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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Cartas


 Em janeiro de 1926, Bandeira foi a Pouso Alto, Minas Gerais. Foi também descansar uns tempos na casa de Ribeiro Couto, que nessa época era promotor nessa cidade mineira. Certo  dia passou por lá Carlos Drummond de Andrade, para “um jantar entre dois trens”, como relatou o próprio poeta mineiro. Conheceram-se pessoalmente o autor de A cinza das horas e o futuro autor de Alguma poesia, pois por carta já se conheciam há alguns anos. Em “carta a Mário de Andrade, Bandeira assim se referiu a Drummond: “O Drummond jantou aqui conosco. Feinho pra burro. Implicantinho. A gente não faz fé. Couto deu uma esfrega de verve nele. Afinal já no trole a caminho da estação ele riu. Uma semana depois ele escreveu de Belo Horizonte se rindo muito e mandando quatro poemetos, três dos quais deliciosos, perfeitos, definitivos”. Drummond, por sua vez, também relatou o episódio em carta a Mpário de Andrade: “ Que jantarzinho agradável foi esse, e que pena você não estar presente! Falamos um pouco de tudo e não chegamos a acordo sobre nada. Gostei muito deles dois, se bem que achasse o Ribeiro Couto mais expansivo que o Manuel. Este último é assim mesmo? Porém mesmo assim gostei muito dele. São dois camaradões, não há dúvida”.
Sobre a viagem de volta de Pouso Alto para o Rio de Janeiro, existe também uma carta saborosíssima de Bandeira para Joanita Blank, datada de 11 de fevereiro e 1926:
‘Pois, minha gente, foi uma expedição! Primeiro pra começar, a estrada de Pouso Alto para a estação estava se consertando, de sorte que não passava nem automóvel nem charrete. À vista do que tivemos que ir... de carro de boi! Dois caixões com uma manta por cima e nos instalamos eu, a Menina [mulher de Ribeiro Couto] e o Couto e levamos uma hora pra chegar – uma coisa que o automóvel faz em 10 minutos. [...] O carro ia cantando, o crepúsculo estava estupendo e o Couto (que raspou a cabeça à máquina! Está agora completo!) me disse: “ Você Manuelzinho, nunca pensou que havia de ter a honra de viajar em cima de um órgão!”.
Chegados na estação soubemos que o trenzinho vinha com um atraso de 2 horas. Apenas. Ficamos lá como almas penas [...] Chegamos a Cruzeiro, para estranha a cama, não dormir e no dia seguinte viajar de dia, que me cansa tanto? Pois sim! Comprei passagem no noturno, sem cama. Chegou o trem com meia hora de atraso. COMPLETAMENTE CHEIO. O Couto quis me reter. Eu arrisquei viajar a pé. Tive sorte. Logo que o trem partiu, passou o chefe do trem e eu, com o meu arzinho mais corruptor, perguntei se não podia se dar um jeito pra me arranjar cama. [...] Não dormi mas fiz melhor: ouvi durante toda a noite o poema futurista “Petreque-petreque! Petreque-petreque! Túnel! Petreque-petreque! Pontilhão! Petreque-petreque!- fiiiiiiiii...u! Parada. A lanterninha do vigia. Uma voz no meio da noite. Etc.



Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1925.
Mário.
Recebi a carta, os versos. Antes de mais nada - chegaram as três colaborações.
Como a "Cidade Nova" vai sair na 2ª semana, para não ficar muito verso numa semana darei P o trecho de romance, depois os "Losangos", depois o "Cartaz".189 Tudo está muito bom. Engraçado: você está atravessando a mesma fase que eu no tempo do Carnaval, - o de pesquisas técnicas e eu sinto que você está experimentando a mesma volúpia porque você nem eu demos pra isso pelo prazer de vencer uma dificuldade, como o Guilherme, por ex., gosta de fazer, mas unicamente por inquietação expressiva: até parece que há um estado de alma em que existe essa necessidade de pesquisa. Isso digo a propósito dos "Losangos". Começou o "Mês". 0 mineiro achei fraco, uma maneira de dizer muito influenciada por você e um tonzinho um pouco conceited. Quando ontem comecei a ler o artigo do Sérgio, pensei comigo: esta gente está explicando demais! Porém achei o explicador bom. Hoje sou eu. Só quero ver o que você diz do meu (Adeus de) Teresa...
A sua carta me deixou estupefacto. Eu não sabia que era assim! Puxa, agora sou eu que tenho medo da responsabilidade. Estas coisas que você me escreveu são tão sérias e tão enormemente comoventes na boca de um homem que é melhor não comentar. Tive de refletir sobre os meus próprios sentimentos que não eram e ainda não estão muito claros. Mas \,ocê ajudou a análise e me tirou do caminho errado porque, te digo com toda a franqueza, eu já estava muito inclinado a pensar que não lhe queria verdadeiramente bem, mas apenas uma profunda e gostosíssima admiração. Isso nasceu com toda a certeza do fato de ter a nossa amizade nascido e crescido em cartas. Há uma diferença grande entre o você da vida e o você das cartas. Parece que os dois vocês estão trocados: o das cartas é que é o da vida e o da vida é que é o das cartas. Nas cartas você se abre, pede explicação, esculhamba, diz merda e vá se foder; quando está com a gente é... paulista. Frieza bruma latinidade em maior proporção pudores de exceção. Você esteve na minha casa aqui e não cometeu a menor indiscrição: não olhou pra nada. Eu quando fui à sua, escrafunchei tudo. Você tem uma natureza retalhada de mil direções afetivas e certas coisas que eu não saberia dizer agora quais são me aporrinham, mas você disse uma coisa baita na sua carta que é aquela atenção paterna com que eu quero que as suas coisas fiquem excelentes. Mas ainda isso eu poderia explicar do seguinte modo: eu carrego uma porção de coisas que não sei exprimir; você sente essas coisas como eu por exemplo a vida brasileira; quando eu vejo uma coisa dessas expressa por você sinto uma doçura indefinível -tão doce que agora fiquei com os olhos cheios de água só de aludir a isso! É natural, pois, que quando no meio aparece um detalhe que não vem na mão eu fale pra que tudo seja gostosura. Eu noto mais a minha amizade na raiva com que te defendo. Tenho ensinado muita gente a compreender e gostar de você. Muita gente rebelde vai cedendo terreno mas manhosamente, voltando com ataquesinhos em que procuram interessar a minha vaidade, opondo-me a você. Instantaneamente eu reajo com aquela nitidez verbal que em mim é sinal certo de tesão intelectual. 0 que você diz da hora da morte acho que é verdade... Com as mulheres eu sou capaz de ser a todo o instante como poderei ser com os homens só na hora da morte ou então de gravidade tão grande quanto a hora da morte. Mas essa força a que voce se refere existe em mim -veio da doença - e eu tenho plena consciência dela. A minha meiguice é uma coisa formidável, Mário, e às vezes me sufoca.
Precisamente tudo isto aconteceu num momento dela. Eu tenho vivido numa exaltação que parece que vou arrebentar. Deus me livre de arrebentar agora! Eu morreria desesperado. Mas voltemos a você. 0 "Ponteando sobre o amigo bom" está numa altura e numa perfeição que é uma delícia pra mim. Não mexa no 1 "Eu desejo que todos os rapazes deste mundo"-Não há monotonia. Pode mudar o desprendimento fecundo e militar (não foi esse verso que você achou sem ritmo?) Não entendo "Enquanto a gente for se escutando as palavras" (o ritmo e a música estão muito bonitos). Não notei a ressonância "encia", mas depois que você chamou a atenção, passei a senti-Ia. 0 que me parece é que você quer fazer poesia de sentimento e não de emoção. Pode a emoção aparecer no sentimento, mas este sempre é dominador e cíclico. Dá esse repouso de altitudes. Somente, Mário, você não está fazendo poesia assim porque anda pensando nisso -você não o conseguiria! Você está pensando assim porque a poesia que se está agitando em você é que é assim. Mas isso não tem importância, basta que você saiba, pra seu gozo pessoal, que este "Ponteando" e a "Tarde, te quero bem" produzem exatamente a impressão - com que você sonha - de ardência interior, de pureza que enleva. A técnica, o ritmo estão uma coisa nova: não é metrificação nem é verso livre. Parece que todos os versos tem a mesma medida - o mesmo no de sílabas - com ritmos diversos.
Mário, você deve ter a consciência que eu não podia responder direito aos seus versos e a sua carta. Elas vieram de muito de cima e depois eu estou absolutamente incapaz de coordenar o que sinto e penso.
Um grande e comovido abraço do
M.
PS. Ponha "Canção do ai alegre".


Manu
do coração, fui à merda como você me mandou porém fui xingando "Manu tá besta" todo o tempo. Você me pergunta: "Será mesmo que você pensa que eu te aprecio porque te quero bem?" Nunca imaginei isso e a prova é a importância que os reparos críticos de você sobre as minhas coisas tem pra mim. Faz dias um amigo daqui falou tiririca que ele e os outros dizem que não gostam duma coisa minha e que eu sorrio não me incomodo e sustento a coisa. Não é bem isso não: me incomodo porém sustento a coisa porque geralmente constantemente só falam "não gostei" ou então como no caso da "Maria" dizem: Tire o "edição de Oxford" porque isso é erudição. Você compreende: que valor crítico pode ter uma crítica dessas? Da "Cantiga do ai!" que todos detestaram (menos o Couto, parece) acharam que era sentimentalismo chorão, quando eu recitei ela com boca sorrindo, ritmo vivo e voz clara. Até essa incompreensão me lembrou esclarecer o nome botando "Cantiga alegre do ai" ou "Cantiga do ai alegre", como que você acha melhor? 0 segundo, não? Ou "Cantiga do ai feliz"? Me responda sobre isso. Mas quando você me faz qualquer reparo, geralmente aceito (até uns tempos andei aceitando com docilidade por demais) e quando não aceito modifico, parafuso, repenso, trabalho e sempre fico numa dúvida baita. Isso prova que sei que você me aprecia porque aprecia mesmo, com inteligência, com crítica, com independência de coração. Depois inda vem outra pergunta na carta gostosa de você: "E será mesmo que eu te quero bem?" Quer, Manu... Você me quer muito bem. Você comenta que a nossa amizade é carteada... Isso não quer dizer nada, Manu! Isso é que é o mais puro mais elevado mais masculino feitio e manifestação de amizade. Você me quer um bem danado no que aliás tem certeza que é correspondido ponto por ponto. Repare no carinho infinito, atenção paterna com que você quer que as minhas coisas fiquem excelentes. Não é a gente falando um pro outro "eu sou amigo de você" que mostra amizade não. É num pensamento constante do amigo, é numa palpitação pelo amigo, é no "desejo de sentir o amigo" quando se está longe. E você se for capaz afirme que não sente isso por mim. Sente, Manu. Porque, quando alguém me fala que admira que nem eu o James Joyce eu digo: "esse sujeito é inteligente" e quando me fala que admira você não digo nada não penso nada porém sinto o prazer físico duma vitória? Depois dessa sensação é que posso refletir sobre a inteligência do sujeito, sobre o valor da sensibilidade dele porém primeiro eu senti uma vitória minha, que nem pai cujo filho teve distinção. Primeiro a gente se revê no que foi distinto e tem orgulho dele. E já que entrei nesta explicação de amizade, por 1' e última vez me deixe falar mais uma coisa de que não me envergonho nem peço retribuição. Eu considero você meu maior amigo, o Amigo, o que eu queria ter a meu lado na hora da minha morte que como você sabe deve ser uma hora em que a gente não tem tempo pra esperdiçar. Eu sei que você havia de descobrir num gesto numa palavra num olhar aquele conforto que faz a gente largar esta gostosura de vida na Terra certo de que inda permanecerá. Eu sei disso porque dentro de suas cartas de vez em quando a amizade espia e vem um bafo quente dela que me faz enormemente confortado e feliz. Por discrição besta, por seqüestro devido aos resquícios de diletantismo que inda sobram dentro de mim inda não tive coragem pra te mandar o poema escrito em outubro passado pra você. É da minha fase nova e tenho a certeza de que nunca escrevi mais elevado coisas mais bem sentidas. É no meu conceito ou por outra na minha concepção atual de Poesia, coisa que começou realmente, que se tornou bem consciente com "Tarde, te quero bem". Agora meu desejo é esse: construir o poema pau, o poema que não tem nenhuma excitação exterior, nem de pândega, nem de efeitos nenhuns nem de sentimentos vivazes. Nada que flameje, que rutile, que espicace. Nada de condimentos nem de enfeites. 0 poema poesia construido com pensamento condicionando o lirismo que tem de ser enorme (senão não transparece) o mais formidável que puder porém duma ardência como que escondida porque inteiramente interior. Enfim: o poema inglês. ShelleyKeats, Wordsworth, Swinburne, Yeats, dessa gente. Pleiteio por Álvares de Azevedo contra Castro Alves, caso típico de poesia excitante, poesia condimento, poesia cocktail, poesia-coisas-assim. Quero construir o poema que não se pode ler no bonde, o poema que não carece de ser recitado, ao contrário que perde quando recitado (o tempo dos rapsodos e dos menestréis já passou) o poema que carece ser lido e entendido e o amor verdadeiro há-de descobrir dentro dele o fogo e o foco ardentíssimos porém que não queimam, em vez elevam consolam e são fecundos. Você já viu "Maturidade", já viu "Momento nº 8" e já viu "Tarde, te quero bem". Pois agora veja este "Ponteando sobre o amigo bom". Leia quando estiver disposto, medite. E veja que fatura forte, que-dê verso livre dentro desses versos aparentemente livres? Não tem. E tão medido em tudo, muito mais que um poema parnasiano sem cair no Parnasianismo. Muitas vezes tenho tentado fazer poemas deste meu novo gênero sem poder... Requer uma disposição toda especial e tão concentrada de lirismo que não é muito comum a gente se achar nela. 0 poema enormemente ingênuo!... Tenho ainda nesta fase um "Ponteando sobre o rapaz morto" que principia com esta ingenuidade enorme: "Morto, suavemente ele repousa sobre as flores do caixão". E dou minha palavra que não pretendi fazer primitivismosaiu. Pois leia medite e responda. Estou numa maturidade sublime. Me sinto forte e elevadíssimo. Numa felicidade fantástica feita de êxtase calmo, a calma grande de verão pleno, às 13 horas. Pode ser que eu me engane muito porém a verdade é que me sinto feliz, dentro bem do meu destino e isso me basta.
Porém o que motivou o arrebentamento daquela minha carta não foi não querer que você goste das minhas coisas ou coisa parecida. Foi você me obrigar, querer me obrigar a bancar o gênio pela Noite, a bancar o escritor sério pra vocês mantidos pela artilharia de proteção poderem pagodear à vontade. P...! pois eu não posso pagodear também! Dei o cavaco. Palavra que tive vontade que saíssem coisas bem ruins as minhas colaborações só pra vocês se desiludirem e montarem no porco. 0 que eu quero não é que vocês não me apreciem e o digam (isso anima) quero mais é que vocês não me obriguem a dar mais do que posso e esperem de mim mais do que posso dar. Me deixem poetinha menor como tenho certeza de ser (na verdade acho a opinião que você tem de mim exagerada porém sei que isso provém duma correspondência especial de sensibilidade e não de você querer bem) e então e,-, vez de desilusões comigo terão prazer com as minhas coisas.
E pra você ver o que é amizade fui à merda com esta carta porém obriguei você a ir junto comigo. Agüenta, Felipe
Ciao. Estou melhorando.
Mário

Rio de Janeiro, 15 de março de 1929.
 Mário
(...)
O “libertino” me agrada extraordinariamente e pouco me importa que tomem por outra coisa. Me lembrei outro dia desse título Outra coisa. O Alcântara achou muito bom. Que acha? Eu prefiro este que Rodrigo proprôs: Libertinagem apesar de haver o Le libertinage de Aragon, estou tentadíssimo. Libertinagemserve para a forma e por ironia para o fundo. Nem é tão irônico assim: na “Oração a Terezinha do Menino Jesus” há uma confusão de oração e cantata, da santa e da mulher, que tem alguma coisa de sacrílego, de “libertino” no sentido original francês. Libertinagem é dúbio, é triste, é geral, é breve, é bonito...
Cunha ou coroa? Libertinagem ou Outra coisa? Ou outra coisa?
Abraços do
 M.