Manu
do
coração, fui à merda como você me mandou porém fui xingando "Manu tá
besta" todo o tempo. Você me pergunta: "Será mesmo que você pensa que
eu te aprecio porque te quero bem?" Nunca imaginei isso e a prova é a
importância que os reparos críticos de você sobre as minhas coisas tem pra mim.
Faz dias um amigo daqui falou tiririca que ele e os outros dizem que não gostam
duma coisa minha e que eu sorrio não me incomodo e sustento a coisa. Não é bem
isso não: me incomodo porém sustento a coisa porque geralmente constantemente
só falam "não gostei" ou então como no caso da "Maria"
dizem: Tire o "edição de Oxford" porque isso é erudição. Você
compreende: que valor crítico pode ter uma crítica dessas? Da "Cantiga do
ai!" que todos detestaram (menos o Couto, parece) acharam que era
sentimentalismo chorão, quando eu recitei ela com boca sorrindo, ritmo vivo e
voz clara. Até essa incompreensão me
lembrou esclarecer o nome botando "Cantiga alegre do ai" ou
"Cantiga do ai alegre", como que você acha melhor? 0 segundo, não? Ou
"Cantiga do ai feliz"? Me responda sobre isso. Mas quando você me faz
qualquer reparo, geralmente aceito (até uns tempos andei aceitando com
docilidade por demais) e quando não aceito modifico, parafuso, repenso,
trabalho e sempre fico numa dúvida baita. Isso prova que sei que você me
aprecia porque aprecia mesmo, com inteligência, com crítica, com independência
de coração. Depois inda vem outra pergunta na carta gostosa de você: "E
será mesmo que eu te quero bem?" Quer, Manu... Você me quer muito bem.
Você comenta que a nossa amizade é carteada... Isso não quer dizer nada, Manu!
Isso é que é o mais puro mais elevado mais masculino feitio e manifestação de
amizade. Você me quer um bem danado no que aliás tem certeza que é
correspondido ponto por ponto. Repare no carinho infinito, atenção paterna com
que você quer que as minhas coisas fiquem excelentes. Não é a gente falando um
pro outro "eu sou amigo de você" que mostra amizade não. É num
pensamento constante do amigo, é numa palpitação pelo amigo, é no
"desejo de sentir o amigo" quando se está longe. E você se for capaz
afirme que não sente isso por mim. Sente, Manu. Porque,
quando alguém me fala que admira que nem eu o James Joyce eu digo: "esse
sujeito é inteligente" e quando me fala que admira você não digo nada não
penso nada porém sinto o prazer físico duma vitória? Depois dessa sensação é
que posso refletir sobre a inteligência do sujeito, sobre o valor da
sensibilidade dele porém primeiro eu senti uma vitória minha, que nem pai cujo
filho teve distinção. Primeiro a gente se revê no que foi distinto e tem orgulho
dele. E já que entrei nesta explicação de amizade, por 1' e
última vez me deixe falar mais uma coisa de que não me envergonho nem peço
retribuição. Eu considero você meu maior amigo, o Amigo, o que eu queria ter a
meu lado na hora da minha morte que como você sabe deve ser uma hora em que a
gente não tem tempo pra esperdiçar. Eu sei que você havia de descobrir num
gesto numa palavra num olhar aquele conforto que faz a gente largar esta
gostosura de vida na Terra certo de que inda permanecerá. Eu sei disso porque
dentro de suas cartas de vez em quando a amizade espia e vem um bafo quente
dela que me faz enormemente confortado e feliz. Por discrição besta, por
seqüestro devido aos resquícios de diletantismo que inda sobram dentro de mim
inda não tive coragem pra te mandar o poema escrito em outubro passado pra
você. É da minha fase nova e tenho a certeza de que nunca escrevi mais elevado
coisas mais bem sentidas. É no meu conceito ou por outra na minha concepção
atual de Poesia, coisa que começou realmente, que se tornou bem consciente com
"Tarde, te quero bem". Agora meu desejo é esse: construir o poema
pau, o poema que não tem nenhuma excitação exterior, nem de pândega, nem de
efeitos nenhuns nem de sentimentos vivazes. Nada que flameje, que rutile, que
espicace. Nada de condimentos nem de enfeites. 0 poema poesia construido com
pensamento condicionando o lirismo que tem de ser enorme (senão não
transparece) o mais formidável que puder porém duma ardência como que escondida
porque inteiramente interior. Enfim: o poema inglês. Shelley, Keats,
Wordsworth, Swinburne, Yeats, dessa gente. Pleiteio por
Álvares de Azevedo contra Castro Alves, caso típico de poesia excitante, poesia
condimento, poesia cocktail, poesia-coisas-assim. Quero construir o poema que não se pode ler
no bonde, o poema que não carece de ser recitado, ao contrário que perde quando
recitado (o tempo dos rapsodos e dos menestréis já passou) o poema que carece
ser lido e entendido e o amor verdadeiro há-de descobrir dentro dele o fogo e o
foco ardentíssimos porém que não queimam, em vez elevam consolam e são
fecundos. Você já viu "Maturidade", já viu "Momento nº
8" e já viu "Tarde, te quero bem". Pois agora veja este
"Ponteando sobre o amigo bom". Leia quando estiver disposto, medite.
E veja que fatura forte, que-dê verso livre dentro desses versos aparentemente
livres? Não tem. E tão medido em tudo, muito mais que um poema parnasiano sem
cair no Parnasianismo. Muitas vezes tenho tentado fazer poemas deste meu novo
gênero sem poder... Requer uma disposição toda especial e tão concentrada de
lirismo que não é muito comum a gente se achar nela. 0 poema enormemente
ingênuo!... Tenho ainda nesta fase um "Ponteando sobre o rapaz morto"
que principia com esta ingenuidade enorme: "Morto, suavemente ele repousa sobre
as flores do caixão". E dou minha palavra que não pretendi fazer
primitivismo, saiu. Pois leia medite e responda. Estou numa maturidade
sublime. Me sinto forte e elevadíssimo. Numa felicidade fantástica feita de
êxtase calmo, a calma grande de verão pleno, às 13 horas. Pode ser que eu me
engane muito porém a verdade é que me sinto feliz, dentro bem do meu destino e
isso me basta.
Porém o
que motivou o arrebentamento daquela minha carta não foi não querer que você
goste das minhas coisas ou coisa parecida. Foi você me obrigar, querer me
obrigar a bancar o gênio pela Noite, a bancar o escritor sério pra vocês
mantidos pela artilharia de proteção poderem pagodear à vontade. P...! pois eu
não posso pagodear também! Dei o cavaco. Palavra que tive
vontade que saíssem coisas bem ruins as minhas colaborações só pra vocês se
desiludirem e montarem no porco. 0 que eu quero não é que vocês não me apreciem
e o digam (isso anima) quero mais é que vocês não me obriguem a dar mais do que
posso e esperem de mim mais do que posso dar. Me deixem poetinha menor como
tenho certeza de ser (na verdade acho a opinião que você tem de mim exagerada
porém sei que isso provém duma correspondência especial de sensibilidade e não
de você querer bem) e então e,-, vez de desilusões comigo terão prazer com as
minhas coisas.
E pra
você ver o que é amizade fui à merda com esta carta porém obriguei você a ir
junto comigo. Agüenta, Felipe
Ciao. Estou
melhorando.
Mário
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