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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013


Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 1925.
Mário.
Recebi a carta, os versos. Antes de mais nada - chegaram as três colaborações.
Como a "Cidade Nova" vai sair na 2ª semana, para não ficar muito verso numa semana darei P o trecho de romance, depois os "Losangos", depois o "Cartaz".189 Tudo está muito bom. Engraçado: você está atravessando a mesma fase que eu no tempo do Carnaval, - o de pesquisas técnicas e eu sinto que você está experimentando a mesma volúpia porque você nem eu demos pra isso pelo prazer de vencer uma dificuldade, como o Guilherme, por ex., gosta de fazer, mas unicamente por inquietação expressiva: até parece que há um estado de alma em que existe essa necessidade de pesquisa. Isso digo a propósito dos "Losangos". Começou o "Mês". 0 mineiro achei fraco, uma maneira de dizer muito influenciada por você e um tonzinho um pouco conceited. Quando ontem comecei a ler o artigo do Sérgio, pensei comigo: esta gente está explicando demais! Porém achei o explicador bom. Hoje sou eu. Só quero ver o que você diz do meu (Adeus de) Teresa...
A sua carta me deixou estupefacto. Eu não sabia que era assim! Puxa, agora sou eu que tenho medo da responsabilidade. Estas coisas que você me escreveu são tão sérias e tão enormemente comoventes na boca de um homem que é melhor não comentar. Tive de refletir sobre os meus próprios sentimentos que não eram e ainda não estão muito claros. Mas \,ocê ajudou a análise e me tirou do caminho errado porque, te digo com toda a franqueza, eu já estava muito inclinado a pensar que não lhe queria verdadeiramente bem, mas apenas uma profunda e gostosíssima admiração. Isso nasceu com toda a certeza do fato de ter a nossa amizade nascido e crescido em cartas. Há uma diferença grande entre o você da vida e o você das cartas. Parece que os dois vocês estão trocados: o das cartas é que é o da vida e o da vida é que é o das cartas. Nas cartas você se abre, pede explicação, esculhamba, diz merda e vá se foder; quando está com a gente é... paulista. Frieza bruma latinidade em maior proporção pudores de exceção. Você esteve na minha casa aqui e não cometeu a menor indiscrição: não olhou pra nada. Eu quando fui à sua, escrafunchei tudo. Você tem uma natureza retalhada de mil direções afetivas e certas coisas que eu não saberia dizer agora quais são me aporrinham, mas você disse uma coisa baita na sua carta que é aquela atenção paterna com que eu quero que as suas coisas fiquem excelentes. Mas ainda isso eu poderia explicar do seguinte modo: eu carrego uma porção de coisas que não sei exprimir; você sente essas coisas como eu por exemplo a vida brasileira; quando eu vejo uma coisa dessas expressa por você sinto uma doçura indefinível -tão doce que agora fiquei com os olhos cheios de água só de aludir a isso! É natural, pois, que quando no meio aparece um detalhe que não vem na mão eu fale pra que tudo seja gostosura. Eu noto mais a minha amizade na raiva com que te defendo. Tenho ensinado muita gente a compreender e gostar de você. Muita gente rebelde vai cedendo terreno mas manhosamente, voltando com ataquesinhos em que procuram interessar a minha vaidade, opondo-me a você. Instantaneamente eu reajo com aquela nitidez verbal que em mim é sinal certo de tesão intelectual. 0 que você diz da hora da morte acho que é verdade... Com as mulheres eu sou capaz de ser a todo o instante como poderei ser com os homens só na hora da morte ou então de gravidade tão grande quanto a hora da morte. Mas essa força a que voce se refere existe em mim -veio da doença - e eu tenho plena consciência dela. A minha meiguice é uma coisa formidável, Mário, e às vezes me sufoca.
Precisamente tudo isto aconteceu num momento dela. Eu tenho vivido numa exaltação que parece que vou arrebentar. Deus me livre de arrebentar agora! Eu morreria desesperado. Mas voltemos a você. 0 "Ponteando sobre o amigo bom" está numa altura e numa perfeição que é uma delícia pra mim. Não mexa no 1 "Eu desejo que todos os rapazes deste mundo"-Não há monotonia. Pode mudar o desprendimento fecundo e militar (não foi esse verso que você achou sem ritmo?) Não entendo "Enquanto a gente for se escutando as palavras" (o ritmo e a música estão muito bonitos). Não notei a ressonância "encia", mas depois que você chamou a atenção, passei a senti-Ia. 0 que me parece é que você quer fazer poesia de sentimento e não de emoção. Pode a emoção aparecer no sentimento, mas este sempre é dominador e cíclico. Dá esse repouso de altitudes. Somente, Mário, você não está fazendo poesia assim porque anda pensando nisso -você não o conseguiria! Você está pensando assim porque a poesia que se está agitando em você é que é assim. Mas isso não tem importância, basta que você saiba, pra seu gozo pessoal, que este "Ponteando" e a "Tarde, te quero bem" produzem exatamente a impressão - com que você sonha - de ardência interior, de pureza que enleva. A técnica, o ritmo estão uma coisa nova: não é metrificação nem é verso livre. Parece que todos os versos tem a mesma medida - o mesmo no de sílabas - com ritmos diversos.
Mário, você deve ter a consciência que eu não podia responder direito aos seus versos e a sua carta. Elas vieram de muito de cima e depois eu estou absolutamente incapaz de coordenar o que sinto e penso.
Um grande e comovido abraço do
M.
PS. Ponha "Canção do ai alegre".

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